O que você promete para seus públicos?

A importância do engajamento de stakeholders para uma estratégia ESG

Por: Leandro Machado

O ano era 2001.

A Shell vinha lidando com um caso de contaminação na área de uma antiga fábrica em Paulínia/SP há alguns anos, desde quando havia decidido vender a unidade de fabricação de pesticidas para outra empresa, ainda no meio da década de 1990. Naquela altura, assinou um acordo com o Ministério Público e assumiu a responsabilidade pelo passivo ambiental do local: solo e lençol freático estavam contaminados por uma série de poluentes oriundos das atividades ali desenvolvidas ao longo dos anos.

A empresa vinha monitorando a situação regularmente e informando as autoridades, mas mantinha pouco diálogo com a comunidade do Bairro Recanto dos Pássaros – moradores das cerca de 50 pequenas chácaras que ficavam “espremidas” entre a fábrica e o Rio Atibaia. A frente de cada casa/chácara era virada para o alambrado da fábrica, por onde os moradores viam toda a movimentação. A comunidade há algum tempo já demonstrava insatisfação com a situação e tentavam mobilizar outros atores, como a Prefeitura de Paulínia, a Companhia Ambiental de São Paulo – CETESB e algumas ONGs.

O fornecimento (pela Shell) de água a algumas chácaras, com a recomendação de não utilizar água obtida das cacimbas, chamou a atenção dos moradores do bairro Recanto dos Pássaros. Eles passaram a solicitar mais informações a respeito e, não obtendo resposta satisfatória, deram início a uma investigação.

Revista do TRT da 15a. Região, n 49, 2016. Pág. 74

Em 2000, depois da recomendação da empresa de não utilizar água de cacimba (poço) e após notarem odores químicos fortes da água captada nos poços mais rasos, os moradores pediram auxílio do Greenpeace, que acionou a CETESB para efetuar testes na água.

No início de 2001 o relatório da Companhia Ambiental de São Paulo é divulgado, apresentando contaminação no lençol freático (o que era corroborado pelo acompanhamento da Shell, ao mesmo tempo que negavam que os contaminantes presentes na água e no solo oferecessem risco à saúde dos vizinhos) e o caso começa a ganhar tração na mídia.

E nesse momento eu começo a ser testemunha ocular da história: acabava de me formar em Ciência Política e estagiava no escritório da Shell em Brasília quando fui contratado para atuar no recém-criado Comitê de Crise da empresa, como responsável pelo relacionamento com a comunidade e governo local.

E pude presenciar o que acredito ser um dos principais erros no relacionamento com a comunidade até aquele momento – e que fez com que a crise ganhasse, rapidamente, proporções nacionais e internacionais.

Sabendo que a contaminação, apesar de anos de trabalho, não estava cedendo, a Shell resolveu trocar sua equipe de assessoria ambiental por uma renomada empresa holandesa. Chegaram à Paulínia uma comitiva de cerca de 15 holandeses e, logo no dia seguinte, com roupas e equipamentos especiais para não contaminar as amostras que iam coletar (macacões brancos dos pés à cabeça, máscaras e óculos especiais, assim como luvas e botas – todas brancas, como se fossem astronautas), os técnicos estrangeiros foram até a fábrica e passaram o dia no terreno coletando porções do solo. Tudo ocorrendo ali, à vista de toda a comunidade – que não havia sido avisada de nada.

Agora imagine a cena: você é morador de uma área que há anos sabe-se contaminada, não confia na empresa causadora da contaminação, está confuso sem saber o risco real que você e sua família correm e, de repente, sem nenhum aviso prévio ou explicação óbvia, acorda um belo dia e vê três vans repletas de “astronautas” chegarem no terreno da fábrica – e eles passam o dia coletando amostras com o cuidado de quem está lidando com algo muito perigoso.

Pânico generalizado.

Após essa fatídico acontecimento, a crise se tornou gigante. Para resumir: no ano seguinte a Shell se viu obrigada a comprar todas as chácaras e realocar os moradores e, anos depois, assinou o que é até hoje um dos maiores acordos trabalhistas da história: R$400 milhões (quase R$900 milhões em valores atualizados) foram direcionados para ex-trabalhadores da fábrica e fundos de pesquisa.

Não que esse erro tenha causado toda a crise, mas foi o que a amplificou e a descontrolou. Os tempos eram outros, o papo sobre sustentabilidade empresarial estava engatinhando, mas a importância fundamental do correto engajamento de seus públicos de interesse já mostrava seu preço.

A evolução do tema

À medida que as empresas foram reconhecendo cada vez mais a importância dos fatores ambientais, sociais e de governança (ESG) em suas operações, a gestão de públicos de interesse tornou-se um componente crítico da estratégia corporativa. O engajamento com stakeholders, incluindo funcionários, clientes, investidores e comunidades vizinhas, passou a ser visto como essencial para construir confiança, gerenciar riscos e criar valor a longo prazo.

Neste post, explorarei a importância do engajamento público para uma estratégia de ESG, os desafios enfrentados pelas empresas ao engajar stakeholders e as melhores práticas para um engajamento efetivo de seus públicos de interesse.

Importância do Engajamento Público para uma Estratégia Corporativa de ESG

O engajamento público é um componente crítico de uma estratégia corporativa de ESG, pois permite que as empresas entendam, respondam e até se antecipem às preocupações e expectativas de seus stakeholders.

Ao engajar-se corretamente com seus públicos prioritários (com objetivos claros, no tempo certo, com temas relevantes, com promessas críveis e pelos canais corretos), as empresas têm muito a ganhar.

Por exemplo, o engajamento com as comunidades locais pode ajudar as empresas a entender os impactos sociais e ambientais de suas operações e identificar oportunidades de colaboração e criação de valor compartilhado. O engajamento com investidores pode ajudar as empresas a entender suas prioridades e expectativas de ESG, aprimorar a gestão e seus relatórios e atrair capital de investidores responsáveis. O engajamento correto com colaboradores pode ajudar as empresas a construir uma cultura de sustentabilidade e inovação, além de atrair e reter os melhores talentos.

Desafios no Engajamento de Stakeholders

Apesar dos benefícios do engajamento público, as empresas frequentemente enfrentam desafios ao engajar stakeholders de forma efetiva. Alguns dos desafios comuns incluem:

1. Falta de confiança: Os stakeholders podem ser céticos em relação às motivações das empresas e podem não confiar em seus compromissos com questões de ESG. Se você leu meu último texto, verá que a confiança despencou nos últimos dois anos.

2. Barreiras de comunicação: As empresas geralmente têm dificuldade em se comunicar efetivamente com stakeholders, especialmente aqueles de origens diversas, com diferentes níveis de expertise e interesse.

3. Restrições de recursos: O engajamento com stakeholders é demorado (como qualquer construção de relações de confiança) e pode exigir muitos recursos, especialmente para pequenas e médias empresas.

4. Resistência à mudança: Os stakeholders podem resistir a mudanças no status quo, especialmente se perceberem que seus interesses estão ameaçados.

Abordagens para Organizar o Engajamento

Para superar esses desafios, as empresas podem adotar várias abordagens para o engajamento de públicos, dependendo de seus objetivos, recursos e contexto. Algumas das abordagens comuns incluem:

1. Engajamento ad hoc: As empresas podem engajar-se com stakeholders de forma ad hoc, respondendo a questões ou preocupações específicas à medida que surgem.

2. Engajamento formal: As empresas podem estabelecer mecanismos formais para engajar-se com stakeholders, como comitês consultivos, painéis de stakeholders ou consultas públicas.

3. Engajamento colaborativo: As empresas podem colaborar com stakeholders para co-criar soluções para problemas complexos, como desafios de sustentabilidade ou questões sociais.

A abordagem mais completa

Um dos frameworks mais amplamente reconhecidos para o engajamento de públicos é o Espectro de Participação Pública da International Association for Public Participation (IAP2). O Espectro da IAP2 é uma abordagem que descreve diferentes níveis de envolvimento público em processos de tomada de decisão, desde informar até empoderar stakeholders.

O Espectro é baseado no princípio de que a participação pública deve ser adaptada às necessidades e interesses dos stakeholders e deve ser guiada por valores centrais como inclusão, transparência e capacitação.

O Espectro de Participação Pública da IAP2 consiste em cinco níveis, cada um com um objetivo específico e uma promessa ao público, como mostra a tabela a seguir (adaptada por mim):

Além do Espectro, vale mencionar os valores centrais da IAP2, que são um conjunto de princípios orientadores que ajudam a garantir uma participação pública efetiva e significativa. Mesmo em uma empresa pequena e que queira somente informar ou consultar seus públicos, os valores são direcionadores importantes para a ação:

1. A participação pública é baseada na crença de que aqueles que são afetados por uma decisão têm o direito de participar do processo de tomada de decisão.

2. A participação pública inclui a promessa de que a contribuição pública influenciará a decisão.

3. A participação pública promove decisões sustentáveis reconhecendo e comunicando as necessidades e interesses de todos os participantes, incluindo os tomadores de decisão.

4. A participação pública busca e facilita o envolvimento daqueles potencialmente afetados ou interessados em uma decisão.

5. A participação pública busca a contribuição dos participantes na concepção do formato de como eles participam.

6. A participação pública fornece aos participantes as informações de que precisam para participar de maneira significativa.

7. A participação pública comunica aos participantes como sua contribuição afetou a decisão.

As empresas podem usar o Espectro da IAP2 para projetar e implementar processos efetivos de engajamento de stakeholders que sejam adaptados aos seus objetivos, recursos e contextos.

Por exemplo, uma empresa pode usar o nível “informar” do Espectro para fornecer aos públicos informações sobre sua estratégia e desempenho de ESG, o nível “consultar” para obter feedback das comunidades vizinhas sobre um investimento em uma fábrica, o nível “envolver” trabalhar diretamente com stakeholders para co-criar soluções para desafios de ESG, o nível “colaborar” para colaborar com stakeholders no desenvolvimento de um novo produto, e o nível “empoderar” para colocar a tomada de decisão final de nas mãos daquele ou daquele públicos.

Comunicação não é tudo.

Ainda que a comunicação tenha um papel fundamental no engajamento de stakeholders, ela é só o começo.

Entendendo isso, desenvolvemos na CAUSE há alguns anos o que chamamos de “curva do engajamento”, em que mostramos de maneira gráfica que a comunicação é efetiva para os primeiros níveis de engajamento – quando eu preciso dar informação e contexto para tirar aquele stakeholder do alheamento e levá-lo ao nível de consciência sobre aquele tema ou causa.

A partir daí, se eu quiser engajar aquele stakeholder a ponto dele(a) se converter em um agente de transformação (que não só está engajado, mas que atua proativamente em favor do tema), preciso criar vivências, convocações e ferramentas.

O que você está prometendo aos seus stakeholders?

Como vimos, o engajamento público é um componente crítico de uma estratégia corporativa de ESG, pois permite que as empresas construam confiança, gerenciem riscos e criem valor a longo prazo (ou pelo menos não amarguem prejuízos bilionários como no caso da Shell há vinte anos).

Para engajar stakeholders de forma efetiva, as organizações (incluindo a sua) precisam superar desafios comuns, como falta de confiança, barreiras de comunicação, restrições de recursos e resistência à mudança.

Você pode adotar várias abordagens para o engajamento de stakeholders, dependendo de seus objetivos, recursos e contextos, e pode usar frameworks como o da IAP2 e o da CAUSE para orientar seus esforços de engajamento – lembrando sempre que engajamento não é sinônimo de comunicação pura e simplesmente.

E, à medida que desenvolve suas estratégias de ESG, deve pensar nas três perguntas “de ouro” em um processo de engajamento: qual o objetivo do engajamento, o que estamos prometendo aos nossos stakeholders e como podemos engajá-los efetivamente?

Isso não vai prevenir toda e qualquer crise futura, mas vai evitar que “astronautas” saiam do nada para piorar ainda mais uma situação que já está pra lá de crítica.

A CAUSE é uma consultoria que trabalha com ESG e programas de impacto, o que inclui:

  • Estratégia e governança para sustentabilidade;
  • Análise e benchmark para identificar gaps em ESG;
  • Estratégia de performance em ESG;
  • Cultura e engajamento em ESG;
  • Análise crítica de relatos;
  • Comunicação e reporte em ESG; 
  • Desenvolvimento e implementação de programas de impacto positivo.

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